segunda-feira, 7 de maio de 2012

A vida, um picadeiro, viver, um malabarismo

Laura Ralola




Marolinha é um palhaço de apenas cinco anos. Nasceu numa noite em que a lua sorria, dentro de uma barraca em um povoado minúsculo. O espetáculo do circo em que seus pais viviam acontecia na mesma hora em que dona Ana, uma das cozinheiras do circo, ajudava em seu parto. Dona Ana limpou e vestiu Marolinha bem a tempo de correr para dentro do circo e mostrar ao bebê o show dos trapezistas. “Aquele lá, no ar, é seu pai, neném”, apontou ela. 

Aos dois anos, Marolinha, que fora registrado como Antônio, já tinha total intimidade com os malabares e gostava de pintar o rosto e apresentar, junto com seus coleguinhas, espetáculos exclusivos para os companheiros circenses. Aos cinco, já tinha um pequeno número no circo e era sempre aplaudido de pé pelo público. A vida itinerante era a única que ele conhecia. Vivia de forma simples. O menino só se queixava do calor que fazia a noite dentro da barraca. Seu presente no último aniversário havia sido um ventilador enferrujado e barulhento. O ventilador era o bem material mais valioso que Marolinha possuía. 


Era o filho que todos os pais circenses desejavam ter. Quase nunca ficava doente, comia pouco e não chorava por nada. Apesar de não frequentar a escola, era uma criança inteligente. Aprendia rápido e pescava as coisas no ar. Marolinha sabia que algo não andava bem no circo. Estavam na cidade há três dias e por algum motivo ainda não tinham nem estendido as lonas. Os olhos de sua mãe estavam fundos e cansados e o garoto se assustou quando ela o mandou entrar na barraca. “Precisamos conversar”, disse. Ufa! A notícia não era ruim. Marolinha saiu da barraca pulando de felicidade. Iria ganhar um irmãozinho. Não era possível compreender o porquê do nervosismo e falta de paciência da mãe e nem o uso excessivo de álcool e tabaco do pai. Todos no circo estavam estranhos. “Problema de adulto” era o que ouvia quando perguntava o que estava acontecendo. 

Certa madrugada, quando levantou para ir ao banheiro, Marolinha percebeu que estava sozinho na barraca. A caminho do banheiro, escutou uns cochichos distantes e, automaticamente, foi seguindo as vozes. A maioria dos adultos do circo sentava em volta de uma fogueira e a discussão parecia séria: “O prefeito da cidade não libera alvará para nós começarmos as apresentações, parece que há pressão dos comerciantes locais”, “os bombeiros não aceitam que nossa arquibancada seja feita de madeira”, “acho que deveríamos ir para outra cidade o mais rápido possível. Nosso estoque de comida está chegando ao fim”. Foi aí que Marolinha entendeu o motivo pelo qual estavam tomando sopa rala há duas semanas. 

O mágico, que há muito estava quieto e parecia absorto em seus pensamentos, sem mais nem menos desatou a falar. Ele queria ser visto como um cidadão comum, não aguentava mais viver à margem da sociedade. “Falta muito para tudo na cultura, não sei como é que pode ser ainda pior no circo”, desabafou com os olhos brilhando antes de abaixar a cabeça e voltar para os seus pensamentos. O garoto se assustou ao ouvir o choro agudo de sua mãe, ela dizia algo sobre a dificuldade de conseguir um médico no serviço de saúde pública para acompanhar sua gravidez e que estava muito preocupada, pois já não era tão jovem. A saúde pública no Brasil já é deficiente e, para alguém que não tem endereço fixo, é ainda mais difícil. 
Marolinha nunca havia presenciado um momento tão delicado e, chorando também, correu para os braços dos pais. Foi desse jeito que o menino começou a entender algumas coisas do circo, além dos malabares e da alegria, coisas sérias, coisas de gente grande.


A história de Marolinha é a história de muitos artistas circenses, que ilustra o que foi falado no bate-papo entre as ativistas Sula Mavrudis e Alice Viveiros nessa segunda-feira (30) no Teatro SESI. Nesse debate-espetáculo do CIRCOVOLANTE – 4º Encontro de Palhaços, o circo foi o palco, mas também o tema, e o motivo de discussões sobre avanços, retrocessos e leis para a categoria no Brasil.


Alice Viveiros
Foto: Beatriz de Melo

Sula Mavrudis
Foto: Beatriz de Melo

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